Das cinco emoções que marcam o luto, a principal que a família de Marcos Aurélio Borges sente é um misto de raiva e tristeza. Ele morreu no último domingo (21), vítima de um acidente de moto, em Jaci-Paraná (RO). O distrito de Porto Velho, que fica localizado há 90km da capital, tem apenas um cemitério – quase lotado – que está sem coveiro. O cunhado, as sobrinhas, os irmãos e irmãs e a mãe de Marcos Aurélio tiveram que abrir uma cova e enterrar o homem com as próprias mãos.
O enterro de Marcos Aurélio estava marcado para às 8h de terça (23). Após o final do velório, o cortejo carregou o caixão até o cemitério do distrito. Sob o sol de 37ºC, Marcos e família esperaram pelo descanso final, mas receberam um desgosto eterno. Pela falta de um coveiro, quando o caixão chegou ao cemitério, não havia buraco onde enterrá-lo. Passou-se 1h30 até que a funerária teve que deixar o corpo de Marcos para ir atender outro velório.
A família esperou. Esperou. Cansou de esperar. O cunhado de Marcos foi até o Centro Administrativo de Jaci Paraná, em busca de ajuda da Prefeitura para enterrar o parente. Não conseguiu. Voltou ao cemitério e, na companhia de um amigo, operou uma retroescavadeira para abrir a cova. “Não tinha pá [no cemitério] nem corda para descer o caixão na cova. Tivemos que correr atrás de uma corda, no desespero, na hora, para descer o corpo”, disse Amanda Borges, sobrinha de Marcos, ao jornal Rondoniaovivo. “A gente fez a cova mesmo. A funerária cumpriu com o combinado – levaram o caixão até o cemitério. Mas o corpo [dentro do caixão] estava no sol. A boca, o nariz e os olhos do meu tio começaram a escorrer”.
Enquanto a família Borges enterrava Marcos com as próprias mãos, o administrador distrital de Jaci-Paraná, José ‘Sarney’ da Conceição Silva, invadia a cerimônia. Sarney foi indicado para o cargo de administrador pelo vereador Jurandir ‘Bengala’ (REP), que é conhecido como ‘coronel de Jaci-Paraná‘. “Ele [Sarney] chegou lá com um carro oficial. Reclamou que a gente abriu a cova – e ainda teve a audácia de dizer que a gente cavou no lugar errado”, contou Amanda.
Sarney disse para a família de Marcos que eles não poderiam ter aberto a cova no lugar onde cavaram por que o buraco estava perto demais de outro túmulo. “Ele sequer pediu desculpas pela falta do coveiro. Disse também que não se importava com o que a gente falasse, porque nossas palavras não atingiam ele”, disse Nilcélia Scheifele Borges, irmã de Marcos Aurélio, ao jornal.
Ao Rondoniaovivo, Nilcélia e Amanda enviaram vídeos e fotos do caso. Gravaram o bate boca com Sarney que, nas filmagens, aparece acanhado enquanto é rechaçado por uma horda de mulheres enlutadas. Elas também contaram ao jornal que o administrador tentou enterrar Marcos Aurélio. “Ele chegou lá, pegou a corda e uma pá e tentou enterrar meu irmão”, disse Nilcélia. A família não permitiu que Sarney continuasse com as intromissões. “Ele tirou sarro da nossa cara. Tentou intimidar nosso cunhado para que a gente não denunciasse o caso.”
Nilcélia foi entrevistada pela reportagem por telefone. Chorou ao rememorar a morte do irmão – e pediu desculpas por chorar. “É uma humilhação. A família ficou constrangida. Ele [Sarney] não respeitou nem o nosso luto. Não foi o primeiro caso desse tipo. O cemitério, assim como Jaci-Paraná, está abandonado.”
Campo-santo em fogaréu
Jaci-Paraná é um dos maiores distritos de Rondônia. À época do Censo de 2010, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, tinha 13.131 habitantes. O cemitério da cidade é o cemitério distrital mais próximo de Porto Velho. O campo-santo é grande e desorganizado. A maioria dos túmulos, assim como as quadras, ruas e jazigos, não tem identificação.
Como forma de manutenção do cemitério, a administração do distrito – ao invés de carpir o terreno e pulverizar inseticida – ateia fogo na vegetação que cresce no espaço. Em 2020, a prática foi registrada em vídeo e publicada em uma rede social. Apesar da repercussão negativa, o distrito mantém o costume do fogaréu.
Procurada para comentar a situação, a Prefeitura de Porto Velho, por meio da Superintendência Municipal de Comunicação, afirma que o distrito de Jaci-Paraná tem sim ‘servidores habilitados’ para realizar serviços de enterro – mas não especificamente ‘coveiros’. Não explicou o por que de nenhum desses servidores estarem disponíveis para realizar o sepultamento de Marcos Aurélio Borges.
A SMC também nega que o distrito faz a limpeza do cemitério usando fogo – e afirma que ‘durante a época de verão, alguns indivíduos costumam cometer esse tipo de crime em várias localidades do município.’ A nota enviada pela superintendência ao jornal Rondoniaovivo pode ser conferida na íntegra, na galeria da notícia.
Marcos Antônio Borges era natural do Paraná, mas veio para Rondônia ainda criança – aos cinco anos. Beradeiro de coração, morreu aos 41 anos e cinco meses de idade. Ele tinha três filhos, trabalhava como churrasqueiro e amava andar de moto. Quando se acidentou foi levado até Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Jaci-Paraná, mas não resistiu. Lucélia lembra do irmão com carinho, mas guarda a despedida com amargor e tristeza. “Meu irmão merecia um enterro digno. É o mínimo que qualquer ser humano merece. A dor que eu passei é uma dor que eu não desejo para ninguém.”
ATUALIZAÇÃO: José ‘Sarney’ da Conceição Silva nega todas as acusações feita pela família. Via telefone, o administrador de Jaci-Paraná disse que, junto da Prefeitura de Porto Velho, prestou toda a assistência para a realização do sepultamento. Sarney também contou que foi ‘agredido verbalmente’ e afirmou que, por uma questão cultural, ‘o povo de Jaci-Paraná gosta de enterrar os entes queridos com as próprias mãos.’
Ícaro Campos Cunha / Rondoniaovivo